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Ilha do Medo (2010)

Muitos têm dito que Martin Scorsese pretendeu com Ilha do Medo (Shutter Island, 2010) fazer uma homenagem aos filmes B. Com sua maestria e domínio técnico-narrativo, o diretor poderia ter feito um belo e despretensioso exercício audiovisual, um eficiente thriller como seu Cabo do Medo (Cape Fear, 1991), entretanto o desfecho deste novo filme mostra que Scorsese não entendeu bem as implicações psicológicas e políticas do gênero que pretendeu explorar.

Ilha do Medo emula um estilo ou gênero de trama psicológica que chamei certa vez de “representação da irrealidade”. São histórias nas quais o personagem principal não sabe até boa parte da trama que vive num mundo de ilusão, contadas de modo que também a platéia não perceba isso. Ao final, contudo, compreende-se que o protagonista vivia num mundo de fantasia para evitar se deparar com uma situação extremamente traumática que experimentara no seu “mundo real”, ou seja, a ilusão a qual o protagonista se submete é uma “defesa inconsciente” contra um “trauma psicológico”. Com uma história que se passa numa instituição psiquiátrica, Ilha do Medo é um filme claramente consciente dessas implicações freudianas, mas infelizmente verificamos ao final tratar-se apenas de psicanálise de botequim.

No quesito representação da irrealidade, o novo filme de Scorsese figura ao lado de obras como Coração Satânico (Angel Heart, 1987), Uma Simples Formalidade (Una Pura Formalità, 1994), Os Outros (The Others, 2001) e em especial da trilogia da irrealidade de David Lynch: Estrada Perdida (Lost Highway, 1997), Cidade dos Sonhos (Mulholland Drive, 2001) e Império dos Sonhos (Inland Empire, 2006).

O enredo de Ilha do Medo se aproxima bem mais dos três primeiros filmes mencionados acima: em todos eles somos ao final apresentados a uma explicação inequívoca que esclarece todas as estranhezas da primeira fase da trama. Os enigmas são solucionados como numa história policial e compreendemos que toda a ilusão na qual o protagonista estava imerso decorria de sua recusa em reconhecer um crime terrível, inassimilável. Nesse aspecto, são filmes que evocam uma estrutura de enredo já empregada por Sófocles em Édipo Rei para evidenciar que a ruína de Édipo é efeito direto da arrogância que o cegava.

Há muitos exemplos contemporâneos de representação da irrealidade no cinema, mas foram os três filmes de Lynch que levaram esse “gênero” mais longe, ao ponto da quase ruptura. Não há nestas obras qualquer revelação final e só com muito esforço interpretativo somos capazes de lançar hipóteses capazes de recriar a linha narrativa que os enredos obstinadamente se recusam a entregar: Estrada Perdida é sobre um músico paranóico que durante um surto esquarteja a esposa e mata seu suposto amante; na cela onde aguarda sua execução se entrega a um delírio escapista no qual se torna um outro, o jovem e fogoso amante da versão loira de sua mulher. Cidade dos Sonhos é sobre uma jovem atriz fracassada que encomenda a morte de namorada bem sucedida que a havia traído e humilhado; enquanto espera a confirmação da morte da amante, ela sonha que na verdade a está protegendo de supostos mafiosos que dominam os bastidores de Hollywood. Império dos Sonhos é sobre uma dona de casa polonesa envolvida com o submundo da prostituição; deprimida, fantasia diante da TV de um quarto de hotel barato que é uma atriz famosa.

Os espectadores em sua maioria saem desses filmes completamente desnorteados, sem conseguir coordenar a profusão de cenas desencadeadas que acabaram de presenciar. São obras que obviamente “desejam” ser revistas algumas vezes. Uma análise criteriosa facilmente demonstra que elas não são desprovidas de coerência, como se afirma comumente, apenas filmes eficientemente apresentados de modo a que experimentemos junto ao protagonista o atoleiro de sua fantasia. O que torna essas obras de Lynch particularmente instigantes é que nelas a fuga pela fantasia está fadada ao fracasso. Como afirmou Zizek em seu singular O Guia Cinematográfico do Perverso, o universo ilusório, delirante ou onírico não desaba por uma intervenção/revelação externa (como em Ilha do Medo e nos outros filmes listados), mas por uma impossibilidade inerente que impede que a ilusão seja uma fuga eficiente: tanto a ilusão quanto a realidade se sustentam nos mesmos paradigmas, nas mesmas pulsões e desejos do sujeito em conflito. Lynch nos apresenta mundos ficcionais nos quais realidade e fantasia não constituem planos distintos, mas superfícies retorcidas porém contínuas, como os dois lados de uma banda de Möbius.

Comparado à agudeza de Lynch, o filme de Scorsese fracassa na insuficiência e na inverossimilhança psicológica. Ninguém surta para se defender da culpa por um crime. Como nos filmes de Lynch, a loucura deveria ser anterior ao ato, já estaria intimamente relacionada ao crime. No caso de Ilha do Medo, a loucura real nem era do personagem principal. Se o ato do protagonista foi motivado pela raiva diante da impossibilidade de ter impedido o real crime, será que suas alucinações se justificariam apenas pelo seu sentimento de impotência? Não é louco quem quer, infelizmente.

Poderíamos, por outro lado, reagir dizendo que Scorsese não quer ser psicólogo ou psicanalista, mas apenas citar um tipo de trama inspirada num pseudo-freudismo barato muito comum nos filmes B hollywodianos dos anos 50. É bem verdade. Contudo, minha maior frustração com este filme é até mais “política” do que “psicanalítica”. É decepcionante que todo o bom esforço de construção do enredo de Ilha do Medo deságüe num inverossímil ardil psiquiátrico encenado para devolver o paciente à realidade pura. Impressiona que Scorsese não denuncie a arrogância e o autoritarismo dessa lógica, num filme que tão freqüentemente evoca a paranóia macartista dos anos 50. Que o dito paciente ao final tenha a “lucidez” de recusar a oferta dos bem-intencionados terapeutas não chega infelizmente a redimir a trama de se atolar até o pescoço na mesma ideologia que parecia querer denunciar.