Questões éticas em A Origem (2010)

A Origem (The Inception, 2010) é formamalmente impecável e moralmente questionável. O diretor Christopher Nolan retorna ao tema do seu excelente Amnésia (Memento, 2000), agora não mais sob o formato do “filme-noir-pós-moderno”, mas sim do “filme-de-roubo-pós-moderno”.

Trata-se de uma releitura não tanto de Matrix (1999), como se tem dito, mas de clássicos como Ocean’s eleven (1960) e The Sting (1973). As várias intrincações narrativas (não tão complicadas com se tem alardeado) derivam mais do formato clássico do gênero do que da temática realidade vs. irrealidade — tão valorizada na contemporaneidade, mas tão antiga quanto Chuang Tsé, que 300 anos antes de Cristo já duvidava se era um homem que sonhava ser borboleta ou uma borboleta que sonhova ser um homem que sonhava ser borboleta…

O filme tem um roteiro muito bem amarrado, é muito bem dirigido e bem montado. A rigor, sonhos já foram melhor representadas no cinema, de Bruñel a Lynch, passando por Fellini. Neste aspecto, o filme de Nolan é mais videogame que Freud. Entretanto, sendo alguém que trabalhou este tema no mestrado, não cheguei a exigir muita coerência freudiana do filme de Nolan. Achei suficiente que ele mantivesse aqui a boa premissa de Amnésia: a imersão na fantasia (irrealidade) como defesa frente à culpa (de ter levado a mulher à morte). Isso já é suficientemente psicanalítico, mesmo quando a representação formal do sonho deixa a desejar.

O que de fato me incomodou neste filme foi a questão ético-moral. No gênero filme-de-roubo o personagem a ser roubado é sempre moralmente equivalente aos ladrões e o objeto furtado sempre fruto de um roubo prévio ou enriquecimento ilícito. Nosso guilty pleasure é autorizado, pois assistimos ladrões roubando ladrões. Uma boa forma de retomar esse gênero hoje seria denunciar essa lógica, devolvendo-nos a culpa por “gozar” com o ato ilícito: denunciar que todo o espetáculo se organizou para que desfrutássemos do crime sem nos sujarmos com ele (estratégia hitchcokiana por excelência, como tão bem demonstrou Ismail Xavier).

Entretanto, em A Origem nada disso acontece. Nem se recorre ao álibi clássico nem se questiona o crime. O que é roubado (na forma de um implante) é a mais profunda relação afetiva entre um pai e um filho. O filme termina por justificar este abuso, pois a falsa reconciliação montada pelos ladrões parece ser melhor, ou mais “terapêutica”, que a realidade. A indeterminação final que nos deixa em dúvida se a narrativa saiu finalmente ou não das várias camadas de sonho para a realidade objetiva não me parece ser suficiente para livrar o filme do ranço amargo da conivência com o estupro da intimidade alheia.

Acho que há algo ao mesmo tempo muito perverso e muito contemporâneo nessa lógica.

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